O demo chegou e perguntou o valor da alma. Minha ala não tem preço. Sempre tem. A minha não. A conversa podia se alongar horas e horas e era provável que nenhum dos dois desistisse de sua tese. O coisa ruim, porém, não querendo perder a disputa nem o tempo, falou que não havia diferença, que se ele não vendesse iria para o inferno do mesmo jeito, porque era homem e homens pecam. Nunca pequei! O capiroto alisou os chifres e duvidou. Pediu provas. O homem então começou a contar sua história:
Disse que tinha nascido de família pobre, em um lugar que não se lembrava bem de como era, exceto pela pobreza; que sua mãe era moça direita, mas que tinha que se prostituir se quisesse dar o que de comer para os filhos; que era o do meio de onze irmãos; que comeu muita farinha para não morrer; que foi para a capital andando de a pé; que nunca teve carteira assinada porque não assinavam a carteira de quem não assinava; que logo se apaixonou por uma menina linda; que o pai dela era criminoso dos graúdos e já tinha até sido prefeito da cidade; que resolveu fugir com a amada; que o velho veio atrás; que teve que matar o homem, mas foi para viver.
Então você pecou! Jamais. O pecado está na intenção e nunca quis mandar ninguém lá pras tuas bandas. Mas mandou. Foi por amor. Não me importa.
O capeta estava realmente empenhado em engrossar suas fileiras. O homem, porém,tinha coração bom, apesar de todos os defeitos, e o demônio logo se convenceu da bondade de seus atos. Deixou o homem continuar a história:
Contou que depois de assassinar o sogro, voltou para sua cidadezinha; que o sexo ficou ruim e as brigas ficaram boas; que a mãe se metia no casamento; que sua irmã também tinha se ajuntado e dividia o terreno; que fazia bicos e ganhava para o básico – mas só para o básico; que a mulher estava acostumada com luxos; que transou com uma vizinha.
Outro pecado! Não foi. E como não? A explicação de que o casamento, de fato, já não existia mais dobrou o coisa ruim, que só balançou a cabeça em sinal de que o homem podia voltar a narrar sua saga:
Explicou que quando a mulher descobriu o par de chifres providenciou a vingança; que semanas depois encontrou ela e o cunhado na mesma cama; que matou os dois.
Agora não dá para fugir! Esse é pecado e dos grossos. Mas eu estava cego, cego de raiva e de amor. Mas o casamento já tinha acabado, não tinha? De fato, mas não de direito. O diabo estava começando a ficar esperto e seria difícil continuar enrolando. O homem conseguiu explicar, porém, que a honra de um macho se fere, seja o chifre de fato ou de direito.
O capiroto só alisou o rabo e o homem entendeu que poderia continuar, mas que teria que ficar atento. Prosseguiu:
Falou que teve que fugir de sua cidade; que se tornou matador profissional.
Ai já é demais! Não é não. Matei por amor – amor ao dinheiro, mas também amor! Dessa vez o demo não quis dar ouvido a explicações. Esfregou as mãos e estava pronto para dar o veredicto quando foi surpreendido: o homem foi mais rápido e com sua arma de pistoleiro de esquina matou o capeta. Aproveitou e pegou a chave e a coroa do inferno.
E foi assim que o único homem que nunca pecou tornou-se dono do mundo.