Archive for the ‘Contos’ Category

O dono do mundo
01/01/2010

O demo chegou e perguntou o valor da alma. Minha ala não tem preço. Sempre tem. A minha não. A conversa podia se alongar horas e horas e era provável que nenhum dos dois desistisse de sua tese. O coisa ruim, porém, não querendo perder a disputa nem o tempo, falou que não havia diferença, que se ele não vendesse iria para o inferno do mesmo jeito, porque era homem e homens pecam. Nunca pequei! O capiroto alisou os chifres e duvidou. Pediu provas. O homem então começou a contar sua história:

Disse que tinha nascido de família pobre, em um lugar que não se lembrava bem de como era, exceto pela pobreza; que sua mãe era moça direita, mas que tinha que se prostituir se quisesse dar o que de comer para os filhos; que era o do meio de onze irmãos; que comeu muita farinha para não morrer; que foi para a capital andando de a pé; que nunca teve carteira assinada porque não assinavam a carteira de quem não assinava; que logo se apaixonou por uma menina linda; que o pai dela era criminoso dos graúdos e já tinha até sido prefeito da cidade; que resolveu fugir com a amada; que o velho veio atrás; que teve que matar o homem, mas foi para viver.

Então você pecou! Jamais. O pecado está na intenção e nunca quis mandar ninguém lá pras tuas bandas. Mas mandou. Foi por amor. Não me importa.

O capeta estava realmente empenhado em engrossar suas fileiras. O homem, porém,tinha coração bom, apesar de todos os defeitos, e o demônio logo se convenceu da bondade de seus atos. Deixou o homem continuar a história:

Contou que depois de assassinar o sogro, voltou para sua cidadezinha; que o sexo ficou ruim e as brigas ficaram boas; que a mãe se metia no casamento; que sua irmã também tinha se ajuntado e dividia o terreno; que fazia bicos e ganhava para o básico – mas só para o básico; que a mulher estava acostumada com luxos; que transou com uma vizinha.

Outro pecado! Não foi. E como não? A explicação de que o casamento, de fato, já não existia mais dobrou o coisa ruim, que só balançou a cabeça em sinal de que o homem podia voltar a narrar sua saga:

Explicou que quando a mulher descobriu o par de chifres providenciou a vingança; que semanas depois encontrou ela e o cunhado na mesma cama; que matou os dois.

Agora não dá para fugir! Esse é pecado e dos grossos. Mas eu estava cego, cego de raiva e de amor. Mas o casamento já tinha acabado, não tinha? De fato, mas não de direito. O diabo estava começando a ficar esperto e seria difícil continuar enrolando. O homem conseguiu explicar, porém, que a honra de um macho se fere, seja o chifre de fato ou de direito.

O capiroto só alisou o rabo e o homem entendeu que poderia continuar, mas que teria que ficar atento. Prosseguiu:

Falou que teve que fugir de sua cidade; que se tornou matador profissional.

Ai já é demais! Não é não. Matei por amor – amor ao dinheiro, mas também amor! Dessa vez o demo não quis dar ouvido a explicações. Esfregou as mãos e estava pronto para dar o veredicto quando foi surpreendido: o homem foi mais rápido e com sua arma de pistoleiro de esquina matou o capeta. Aproveitou e pegou a chave e a coroa do inferno.

E foi assim que o único homem que nunca pecou tornou-se dono do mundo.

O Candidato
29/12/2009

Talvez o velho sonho não pudesse ser realizado. Não que alguém não quisesse. A única pessoa que podia temer a concretização daquele desejo era ele próprio. Mas era muito provável que o sonho não se realizasse – até porque é difícil que algo se faça à revelia de seu executante.

O discurso era é de que desejava aquilo mais do que tudo. Não era verdade e quem o conhecia bem logo reparava nisso. A opinião de seus amigos próximos, porém, não era o que importava. Valia apenas o desejo da tal opinião pública e, em última instância, dos burocratas de seu partido. Eram eles quem traçavam seu destino desde os tempos em que resolveu entrar para a política.

Já estava cansado de tanto trabalhar e não queria mais destaque. Seu desejo era partir para sua casinha no interior, juntar-se com sua mulher e conhecer seus filhos. Tinha perdido a infância de suas crianças. A infância e o carinho. Em troca ganhou muito prestígio e dinheiro – do limpo e do sujo. Sempre teve fama de homem honesto e trabalhador. Realmente nunca deixou de ir um dia sequer ao gabinete. Quando era parlamentar, sua presença no plenário era uma certeza. Na prefeitura, usava até os fins de semana para visitar os bairros mais distantes. Foi um bom governante, apesar de todos os seus defeitos. Tão bom que seus filhos até aceitavam fingir que amavam o pai durante as campanhas.

Mesmo assim era hora de parar. Precisava respirar um ar puro, mas a burocracia não permitia. Durante quarenta anos havia sonhado com aquela candidatura e agora, no momento de realizá-la, resolveu desistir de tudo. Havia mais gente que queria o cargo e alguns até poderiam ganhar. Nenhum, porém, era tão certo quanto ele. Chegou a pedir ao partido que escolhesse outro nome. A resposta que teve não foi apenas negativa. Foi uma ameaça. Candidate-se ou seu nome vai para a lona. Preferiu o nome. Foi eleito. Foi bom como sempre. Mas foi infeliz como nunca.

Lágrimas de Heleninha
27/12/2009

Era uma lágrima. Era uma lágrima daquelas de dor. Não uma dor daquelas que a gente sente quando chuta a mesinha de centro da sala com o dedo mindinho do pé esquerdo. Uma dor interna, daquelas que só ficam aparentes para quem está sentindo. Uma dor que você não consegue explicar, porque ela pode vir de várias formas: o estômago embrulhado, a garganta absolutamente fechada, o coração esmagado, o pulmão que sobe de repente. A dor de Dario era um pouco de tudo isso e muito mais.

Apesar disso ele não esperava que aquela lagrima rolasse. Sentia alguma coisa que estava fora do lugar. Mas não sabia exatamente o que. Não tinha tomado um pé na bunda. Não estava solitário. Não faltava nada: tinha um carro velho na garagem, uma casa alugada e, principalmente, uma mulher que amava muito. Pagava religiosamente o consórcio e logo conseguiria trocar de carro. Talvez pudessem ter filhos, porém essa não era uma prioridade naquele momento. Tudo estava perfeitamente planejado: em um ano ou dois as coisas já estariam nos conformes. Precisavam trabalhar e ganhar algum dinheiro primeiro. Os dois eram professores de escolas municipais. O salário não era dos melhores, mas tinham um futuro brilhante pela frente. Quem sabe dar aulas em uma grande universidade?

Mesmo com passado, presente e futuro tão bonitos e charmosos, aquela lágrima teimava em rolar. Já não era a primeira vez que isso acontecia. Mas estava se tornando cada vez mais frequente nos últimos dias. Não tinha mais horário para acontecer. As vezes no meio da aula tinha que inventar um cisco para disfarçar a visita inconveniente.

O pior de tudo é que não tinha como evitar. Para que a lágrima aparecesse não era nem preciso pensar em qualquer coisa triste. Ela simplesmente chegava e rolava. Depois dela a vida continuava normalmente. Ou quase. Era só aquela dor de alma que teimava em não passar.

Um dia resolveu por fim naquela situação. Saiu de casa logo cedo. Heleninha, sua mulher e companheira, nunca mais o viu. Dessa vez lágrimas rolaram, mas não faltou motivo.

Noite de um fraco
23/12/2009

Acorda. Vira para o lado e volta a dormir. Mentira. Não volta, mas gostaria muito. Não tem porque estar acordado. Não tem qualquer preocupação. Qualquer além dessa maldita insônia que resolveu fazer uma longa visita sem avisar.

O pensamento começa a correr e viaja em poucos segundos ao passado mais distante. À primeira lembrança. À primeira infância. Não uma infância de criança. Uma infância triste, dolorida. A morte da mãe marcou muito. Mesmo não sabendo qual era a cara ou o cheiro da mãe. Mesmo assim, setia uma falta terrível daquele passado que não conheceu.

Pensa em inventar uma história louca e cair no mundo. Fugir do passado, do presente e do futuro. Talvez não seja necessário inventar uma história. Basta brincar de Belchior. Sumir por 20 anos até que alguém repare.

Da infância triste, faz um voo cheio de escalas para a adolescência. Adolescência ainda mais triste que a infância triste. Abre os olhos para não rever as cenas do abuso, esquecer aquela cara nojenta e aquele corpo repugnante e cheio de feridas – por fora e por dentro – que se aproximava, apesar de todos os esforços em contrário.

Os olhos correm pelo quarto. Procuram uma distração. Não adianta. Fecha os olhos, mas enxerga seus pensamentos. Abre de novo. Olha para a janela. Pensa em abrir. Desiste. Está tão cansado que não tem forças para as tarefas mais básicas. Por que raios, então, que o sono não vem?

Resolve se matar. Só assim seus problemas estariam de vez resolvidos. Seria o fim das noites sem dormir. Seria o fim. Mas se lembra que é um fraco. Acha que para se matar é preciso ter coragem. E isso é o que mais lhe falta.

Fecha os olhos. Se vê caindo de um prédio. Abre os olhos. Vira de lado. Começa a cantarolar. Para. Tem medo de acordar as crianças. Uma única pessoa acordada já é mais do que o mundo pode aguentar. Fecha os olhos. Chora. Dorme. Amanhã nada disso terá acontecido (até anoitecer de novo).

Magia de Natal
13/01/2008

Se pudesse ser sincero, mandaria todos aqueles que comemoram a proximidade do Natal para o quinto dos infernos. Que mania idiota aquela de cantarolar musiquinhas de letra retardada. Noites felizes para lá e para cá. A pergunta, porém, era só uma: o que tem de feliz em uma noite em que as pessoas simplesmente fingem ser aquilo que não são, movidas por um falso sentimento de compaixão que faz com que o próximo seja “amado” como a si próprio, mesmo que o próprio não se ame. Não entendia, na verdade, como alguém podia chamar aquilo de uma festa cristã. O que Cristo tentou ensinar nada mais foi do que amor verdadeiro e sincero entre as pessoas e não essa porcaria em quem os porcos capitalistas transformaram o final de ano.

Para falar a verdade, porém, não eram as contradições religiosa e político-econômica que mais incomodavam. As lembranças que o Natal não trazia eram o pior de tudo. Os presentes que não ganhou, as tias velhas que não fingiram achá-lo muito fofo e não apertaram suas bochechas, o amigo do pai que não tentou não se importar quando ele derrubou a árvore em cima da mesa com o peru. Essas não-lembranças traziam um sentimento de “por que comigo?” que sufocava sua alma.

A verdade era que seu maior desejo seria dormir em novembro para acordar só no meio de janeiro, quando já estivesse na hora de comprar a fantasia e decorar o samba-enredo. Infelizmente não podia e, todo ano, tinha que passar por aquela tortura. O pior de tudo era não haver escapatória. São tão poucos os países no mundo para os quais você pode viajar nessa época sem se lembrar que o Natal existe… E não há nada de muito interessante para fazer naqueles raros lugares – cada vez mais raríssimos – em que os shoppings, as ruas, as praias e os parques não ficam enfestados de luzes coloridas e bons velhinhos com cara de bebum – além disso, a chance de encontrar um soldado americano fantasiado com roupas vermelhas e uma barba mal colocada não é pequena.

Sabia que na realidade não via problemas na mentira do Natal. O problema era não fazer parte dessa mentira. E não via sequer solução para se encaixar em todo esse teatro. Já fazia tempo que não tinha família e o lugar de onde vinha não costumava juntar muitas pessoas felizes. Mas isso foi durante a juventude. Quando se aposentou – trabalhando por mais de 20 anos na mesma empresa e sem jamais participar de uma amigo secreto sequer – teve que complementar a renda. A saída foi deixar a barba crescer. Em todos os últimos Natais de sua vida, tornou-se Papai Noel e descobriu a magia que encantava tanto aos outros.

A mentira torna-se uma pequena verdade quando fazemos parte dela.